a camisola azul

aos 14, 15 anos tive uma camisola azul. azul céu em dias de sol e calor. comprei-a na feira. mesmo, mesmo numa banca de ciganos. na altura, era assim: vasculhavam-se as peças mais baratas à procura de algo que nos servisse.
encontrei a camisola azul e nunca mais a larguei. era pouco feminina, ou pelo menos era essa a recordação que tenho dela, com chumaços. os chumaços a que chamava en-chumaços. inocentemente, usei essa camisola azul, com chumaços, de forma repetida. com uns calções cinzentos, também pouco femininos mas que me deixavam andar de mãos nos bolsos. (olhava para o céu e sonhava, um dia, fazer a roupa que me ia nas ideias) por entre as páginas de Gil Vicente, os autos e a Brizida Vaz que me calhou no colo na aula de Português, tinha orgulho naquela camisola azul. meio torta, com chumaços mas linda. 
não tinha tão pouco noção de que esse orgulho - maior ainda quando rodeado de roupas compradas em lojas a sério, com vitrinas cuidadosamente montadas e pensadas - era extensível à vida que tinha, à família que tinha e ao percurso que escolhi. se calhar o que quero dizer é que não era uma vida encenada, pensada ao milímetro; era feia muitas vezes, sombria. outras vezes era manhã. essa manhã de que tão bem me lembro e que me fazia atravessar os pátios cinzentos-betão da escola, a caminho dos fios e dos interruptores. a camisola azul salvava-me dos pensamentos menos bonitos e fazia-me sentir o cheiro das (ainda) frias manhãs de Primavera. dizia-me que as roupas caras, e as vitrinas cuidadosamente montadas, ali, naquele momento, não serviam de nada: o sol passava pelos buracos das telhas dos corredores e era só meu.
guardo com tanto carinho estas recordações destes cheiros, deste sol que trespassava os telheiros que estas manhãs e este orgulho regurgitaram quando olhei para o meu armário. na pilha de roupa o azul pipocava aqui e ali. estava na base. o azul afagou-me e transformou o gesto mecânico (de trocar de roupa) num suspiro longo. num regressar a casa, num sentir-me tocada pelo passado. esse refego de memória levou-me a esse eu que (até agora) vive cá dentro; que, afinal, não está assim tão longe. passem os anos que passarem, continuo a vasculhar a vida. queira lá isso dizer qualquer coisa.

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