rapaz acelerado, cabelo desalinhado

viagens de comboio à noite dão sempre direito a gente ensardinhada. meia carruagem cheia mas vai tudo em cima uns dos outros, com medo que venha uma revoada e leve o couro e o cabelo. 
neste cenário, passa um rapaz acelerado, cabelo desalinhado e roupa com ar de vários dias. dirige-se aos figurantes do banco da frente, com uma ladainha pegada, daquelas que ouvimos todos os dias. nenhum dos figurantes do banco da frente levanta os olhos. o rapaz acelerado, cabelo desalinhado revolta-se, «Eu sou uma pessoa! Pelo menos, olhavam para mim. Não davam nada mas olhavam para mim».

sei que sou o próximo alvo. o rapaz acelerado e com roupa de vários dias desfaz-se em desculpas por me interromper a leitura. faço um esforço para olhar para ele sem que se note muito que as lágrimas me saltam pelas órbitas. e ele fala, fala. fala como se a sua língua fosse uma centopeia e eu perdesse a conta às palavras, ou sequer as entenda. pelo meio do esforço tento sorrir-lhe, como se fosse essa a melhor coisa que lhe pudesse oferecer no momento. 
a sua mão sobe a sua camisola e mostra-me uma cicatriz. sinto o gelo na carruagem, o sopro dos outros figurantes exala tragédia. só consigo entender que foi grave e «Quase morri.», por entre o fôlego choramingador do rapaz de cabelo desalinhado.
de repente, pára. calmamente, agradece-me (apesar de lhe ter dito que não lhe daria dinheiro). «Obrigado por me ouvir. Obrigado por me deixar ser uma pessoa. Às vezes, é só isso que eu quero.»

baixei os olhos, as órbitas continuavam para fora, tentei que as lágrimas escorressem para dentro. na carruagem, o sopro de tragédia dos outros figurantes desapareceu. o silêncio disse-lhes, disse-me, disse-lhe (a ele, o rapaz acelerado, cabelo desalinhado e roupa com ar de vários dias) tudo.



Sem comentários:

Enviar um comentário