entre realidades

entrei no cinema espontaneamente e ao final da tarde. soube-me bem quebrar a rotina que me faz ficar afastada dos grandes écrãns. olhei para os filmes de cada sala e fiquei deliciada por perceber que nenhum fazia parte do circuito comercial, que a sala ia estar quase vazia, que nem precisava ler sinopses ou críticas. deixei-me ir. entre o tempo que restava para a sessão, passei-me pela livraria e trouxe vários livros. um momento de delírio, e depauperamento financeiro, mas tão vital para mim quanto respirar. não vou ler estes livros agora, nem sei quando vou lê-los ou começá-los; saber que eles estão aqui é-me, no entanto, fundamental.
sento-me na sala e percebo que o som me incomoda. não entendo por que razão nos querem ensurdecer, se é apenas um filme. para não me contorcer na cadeira, não me restou alternativa senão usar um lenço de papel como tampão (verídico, verdade verdadinha que passei o filme inteiro de lenço de papel nos ouvidos). 
caminhando pelo filme dentro, percebi: o som ensurdecedor era uma espécie de prenúncio para o desfile das personagens (como é bom efabular!!!!!!), uma forma de estabelecer o páthos. tanta coisa grita dentro destas cinco figuras que dominam a história que, em certos momentos, tudo me pareceu exagerado, sem sentido. e se calhar é isso mesmo: não há sentido na perda, no saber que se vai perder alguém, nesse deambular pela vida quando alguém que tanto amamos nos vai, mais tarde ou mais cedo, deixar. não há sentido e torna-se ensurdecedor o som das coisas que tanto queremos e não vemos como concretizar, porque a vida corre tão depressa, escorre pelos nossos dedos e o tic-tac inquieta-nos e faz-nos sentir, a nós mulheres, que se queremos não podemos esperar. ou quando a perda não surge na forma de alguém mas no espectro da pessoa que nunca vai existir, na pessoa que nos persegue em sonhos - com o seu ar doce, ternurento. 
o primeiro olhar para as personagens que entre si são família faz-nos pensar na aparência e a dicotomia ser/ter parece-nos escarrapachada -  parece clara e inequívoca. uma família entre dois países, que vive do passado e agarrada a uma vida que já não tem, ao império financeiro que já não existe. mas esse olhar dissipa-se, rapidamente, do ter para o ser; e nem os comentários satíricos, sarcásticos e bem apontados dos serventes nos desviam desse ser. acentuam a passagem, aliás. os elementos burgueses despem-se dessa capa e transformam-se, a cada segundo, em pessoas reais. em pessoas que estão sós, amarguradas, que sofrem, que estão doentes, que se sentem abandonadas, traídas, largadas à margem da sociedade. 
pelo meio de tudo isto, destes nadas que são tudo entre duas línguas, conseguimos rir. mesmo não sendo o melhor filme que vi na vida. e nem sei se esse rir cura as feridas - as minhas ou as das personagens. provavelmente, um dia, será catártico? para mim, neste dia, nesta sala de cinema, foi, seguramente, regenerador. 




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