entre águas


sento-me e olho para a Praça do Rossio. a Suíça já não é o que era (ou de como a chuva afasta tudo e todos da calçada escorregadia). e penso: eu já não sou o que era. hoje, peço com sobriedade uma outra chávena: "esta está suja. não se importa?" e o empregado sorri. esse mesmo empregado que olhou de soslaio para o meu português perfeito. sorri displicente e, ao mesmo tempo, desculposo. 
este confronto com o passado burburinha com os sons de outras línguas, os sons de quem muda, no mesmo instante, de e para o português, de quem - diligentemente - tenta perceber como se pede um chá nesta língua velha. devolvo ao ar um suspiro e penso: já não sou o que era. revolvo os frisos de madeira (das paredes) à procura de uma resposta. a verdade... é que não sei. já não sou o que era e perco-me, deambulo e deleito-me em mil pensamentos e projectos por fazer. vejo o fumegar do chá e, só isso, chega para me perder. o meneio das pessoas na rua. 
quando se roda um chapéu sempre se salpica alguém com dor. a dor das gotas que não entendem porque as expulsamos; que não querem sair e escorregam, na esperança de que as deixemos sair pacificamente - pelo próprio pé.
ser gota não deve ser fácil. e ser gota dentro duma casa, ainda pior. nunca se sabe quando, num canto, alguém nos vai pisar ou, talvez pior, esmagar com um pano. só porque somos pequenas. pequenas e escorregadias. mas não o são também os sentimentos? e por mero acaso alguém os pisa? alguém escorrega neles? alguém os enxuga e sacode?
já não há mais chá. levanto-me, perante os impávidos, serenos e cansados empregados. um deles, talvez o chefe, corre na minha direcção. tenta disfarçar que vem cobrar, tenta encobrir o que pensa: no meu português perfeito, não se sabe pedir uma conta. sinto-me na terra de ninguém e pergunto quanto é. saio pela porta dos fundos, sem olhar para trás. 

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