somente uma viagem

escolho esta fotografia (ecléctica) porque não tive coragem de carregar no botão no momento exacto. é fora de portas, ao lado do sítio onde, com os olhos marejados, senti o peito colado às costas e uma vontade irreprimível de gritar. e pensar que entrar naquele espaço foi um mero acaso e uma curiosidade aguçada pela pequena placa que dizia "missa em português".
acontece-me poucas vezes ficar com este nó na garganta que se desfaz com a passagem duma simples partícula de pó. vi, alinhados lado a lado e à vez, vários pares de sapatos. numa lateral (de madeira) que saía dum confessionário. sem legendas ou indicações. sapatos de bebé, sapatos de criança. de menina, de menino. iam crescendo - silenciosos, barulhentos, chorosos. alguns tão gastos que quase dava para ver o chão. assim, de um momento para o outro, aparecem os glamorosos saltos altos. (ainda) sem legendas os sapatos envelhecem. tornam-se rasos. o peso da vida reflecte-se nos calcanhares inclinados. dobro a esquina e vejo que os sapatos desaparecem para cima dos pés duma cadeira de rodas. ao lado, uma mala com um bouquet. e a primeira e única legenda na parede dizia qualquer coisa como: é apenas uma viagem, aproveite-a!
irrompi num choro silencioso. não me consegui conter. a mala era um cliché, o bouquet redundava na mala, a legenda soava a frase feita. mas o poder do percurso fez-me esquecer tudo isso. um dia alguém se lembrou de recuperar aqueles pares de sapatos, perdidos no tempo, para nos relembrar o que é um instante. que a vida é esse mesmo instante que procuramos em todo o lado.
saio pela porta. e a montra relembra-me que a vida num instante é esta mistura. esta ou qualquer outra. mas é nossa. tão nossa que, amiúde, nos esquecemos dela.


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