transeuntes

há uns meses atrás tive de transferir o meu domingo para a 5ª feira. foi mais complicado entender que este passou a ser o meu dia de descanso do que propriamente trabalhar no dito domingo. é bom sair de casa, ao domingo, e sentir que toda a gente ainda dorme, ainda se passeia de pijama entre as divisões das suas casas. mesmo no Inverno, com chuva e vento, a sensação que se tem é que as partículas no ar oferecem menor resistência à nossa passagem. é bom perceber que a vida, aos domingos, começa mais cedo com a entrada da Primavera - que as famílias saem para a rua, que as crianças brincam nos parques, que as bolas batem nas paredes. e esta foi a parte fácil.
a parte difícil foi aproveitar a 5ª feira como um domingo. e o que é que se faz quando o domingo é durante a semana? passeia-se? fazem-se arrumações e limpezas? lê-se? descansa-se?
cria-se um hábito: esta foi a minha lenta resposta. troca-se o carro pelos transportes públicos. olha-se para as horas de maneira diferente e escolhem-se percursos. saboreiam-se 30 minutos de viagem para ler todas as páginas possíveis dos livros que se carregam. limpam-se as lágrimas que escorrem enquanto se lêem os livros. sai-se pela capital a pé e caminham-se quilómetros. aproveita-se para tratar de todos os assuntos pendentes - chatos ou não. visitam-se museus, descobrem-se e redescobrem-se ruas. observam-se os transeuntes, os turistas e a Torre de Babel em que se transformou Lisboa. pega-se pouco na máquina fotográfica porque aquele tempo é precioso. 
e pensa-se. muito. enquanto caminho, penso. e volto a pensar. enquanto, agora, cheiro a Primavera e luto contra a luz que me cega. 
ontem, pelo meio destes pensamentos, senti um murro no estômago. ouço gritos aflitos, vejo alguém, mais velho, que cai no chão, no passeio, no lancil ao lado do carril do eléctrico. a pessoa fica imóvel, deitada. com um ar vulnerável. o condutor pára as carruagens e sai. aproxima-se. várias outras pessoas se aproximam. eu observo de longe. percebo que a ajuda vem a caminho e sigo. com esse punho no meu diafragma. 
a vida não termina com o passar dos anos mas torna-se mais frágil. torna-se leve como uma pena e, por vezes, insegura. insegura porque as pernas deixam de se levantar com a mesma facilidade e custa ler as pequenas letras. tornamo-nos crianças num corpo que se enruga. às vezes, tantas vezes, a solidão preenche os nossos dias. 
e olho para todos os cabelos brancos, todas as peles enrugadas que encontro-se nesse caminho de ontem. alguns parecem felizes e de mão dada. sentem o sol na pele, refrescam-se com uma bebida. de mochila às costas, olham as ruas, os jovens, os caminhos e decidem por onde ir. mas outros não. outros colhem as flores que caem nos canteiros e levam-nas para adornar os cartões que os tapam da e na rua à noite. é a cor que, nas suas cabeças, talvez lhes limpe o cheiro e aclare a pedra onde se reclinam para sonhar. ainda outros ficam nas ruas, nos cantos. olham vazios para quem passa e já nem estendem a mão. têm fome, estão sós. estão sós? estar só é estar na rua, ao abandono, sem mão estendida mas com fome e rebolar o maxilar vezes sem conta como se de uma conta se tratasse? e às janelas, não há solidão? levantando a cabeça, nessas ruas de calçada polida, de rebuliço e línguas cruzadas, há mais gente que não tem poiso - embora tenha tecto e cortinas. há mais quem se sinta só, quem não consiga descer as escadas. há quem até tenha alguém para ajudar a descer as escadas; mas esse alguém não vem, não está cá nem quer estar.
tenho pena que neste País com tanta gente de pele enrugada e cabelos brancos o passado deixe de ser importante. tenho pena que esta gente que deveria ajudar alguém a descer as escadas lá não esteja. tenho pena que se enterre o passado com o passado ainda vivo. tenho pena porque somos tão efémeros quanto esta gente que se torna invisível (até para eles próprios). e essa hora, nessa hora que é tão rápida a chegar...

Sem comentários:

Enviar um comentário